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Carrocinha Não Resolve


Publicado em: 14/12/2007 08:50 | Categoria: Geral

 

Artigo


Mas afinal por que a carrocinha não resolve?

Em primeiro lugar, porque a população de cães se renova rapidamente após o recolhimento pela carrocinha. O número de animais eliminados anualmente em Curitiba de 2002 a 2005 praticamente se manteve constante, o que em si demonstra que o recolhimento de cães não tem impacto no controle populacional. Segundo um censo canino por amostragem realizado recentemente nas residências de Curitiba, a proporção média de pessoa:cão é de aproximadamente 4:1, ou seja quatro pessoas para cada cão. Deste modo, com cerca de 1,8 milhão de habitantes em Curitiba vivem em torno de 450 mil cães. Como foram recolhidos em média 15 mil cães por ano, isso representa menos de 4% da população de cães, insuficiente para qualquer influência permanente na população total de cães do município.

Pode-se pensar que o problema seja o tamanho de Curitiba, ou que a solução seja recolher mais cães; entretanto, segundo os especialistas no assunto, estes argumentos são superficiais. A Organização Mundial de Saúde (OMS), em reunião de peritos em raiva, concluiu que “não há evidências de que a remoção de cães isoladamente tenha impacto significativo na densidade da população de cães ou na transmissão da raiva” (OMS, 2005). Segundo este documento, mesmo em locais nos quais se observou os mais altos índices de recolhimento de cães (em torno de 15% da população total), o recolhimento foi facilmente compensado pelo aumento das taxas de sobrevivência da população restante. Isto significa que mesmo se fossem recolhidos 67,5 mil cães anualmente em Curitiba, este recolhimento não resolveria o problema.

Em segundo lugar estão alguns fatores culturais. No CCZ de Curitiba até 2005, quase 90% dos cães recolhidos eram semi-domiciliados com acesso livre às ruas, sendo que apenas uma minoria era realmente composta de cães de rua. O recolhimento de cães soltos nas ruas e por solicitações diárias endossa uma sociedade que não assume a responsabilidade pelo destino dos seus animais, facilitando o abandono diretamente nas ruas ou por ligação telefônica para a prefeitura.

A noção equivocada da saúde pública de que o recolhimento de cães era a base para o controle populacional e prevenção de zoonoses contribuiu para esta cultura da guarda irresponsável. Solicitações diárias de recolhimento de animais eram feitas por motivo de doença ou idade avançada, crias indesejadas, alteração de comportamento, mudança de residência ou outros motivos tais como viagens e férias familiares. A responsabilidade do proprietário encontrava-se transferida para o serviço de saúde pública em muitas capitais brasileiras, com milhares de animais sacrificados em câmara de gás e apenas um pequeno percentual de cães adotados. A taxa de adoção de cães recebidos no CCZ de Curitiba nos últimos cinco anos foi de apenas 12,4%, calculada da seguinte forma: 23.754 animais sadios apreendidos menos 3.696 animais resgatados pelos donos (15,6%) igual a 20.058 cães, dos quais 2.498 foram doados (12,4%).

Como início de uma nova estratégia, o CCZ de Curitiba realizou um programa de esterilização no bairro Vila Osternack (três mil residências, 15 mil habitantes e população estimada de 3.840 cães), no qual foram esterilizadas 700 fêmeas entre os anos de 2004 e 2005. Embora tenham sido esterilizadas apenas 36,5% das fêmeas, o programa cumpriu com seu objetivo de fomentar a conscientização para a guarda responsável, a qual constitui reconhecidamente a única solução para o controle dos cães urbanos. Como a mudança permanente depende da mudança cultural, apenas com programas contínuos de educação ambiental e guarda responsável o controle de cães urbanos será atingido.

Em terceiro lugar, porque a Lei Federal 9605, de Crimes Ambientais, de 12 de fevereiro de 1998, em seu artigo 32, determina que constitui crime “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, com pena de detenção de três meses a um ano e multa. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, sendo  a pena aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal”. Deste modo, o recolhimento de cães que não ofereçam riscos à saúde passou a ser considerado crime ambiental, em parte por não haver mais a sustentação técnica da OMS. Assim sendo, o recolhimento de cães fica passível de mobilização de ação cível pública pelo Ministério Público, como já aconteceu em vários municípios, inclusive em Curitiba.

 Mas como controlar os cães de rua? Pesquisas realizadas em vários municípios do Estado de São Paulo mostraram que somente 3% da população canina é verdadeiramente de rua, pois a maioria está em situação domiciliada e semi-domiciliada. Em Curitiba, enquanto 90% dos animais que vivem em bairros nobres estão domiciliados, sem acesso as ruas, a maioria dos cães nas vilas e comunidades da periferia é mantida de forma semi-domiciliada, com livre acesso às ruas. Neste quadro, um programa de controle populacional é eficaz apenas se primar pela busca do equilíbrio ambiental por meio da somatória de diversas atividades que visem mudanças culturais da sociedade.

A educação formal deve, no âmbito da disciplina de Educação Ambiental, conter assuntos relacionados à guarda responsável, bem-estar animal, doenças espécie-específicas e zoonoses. Campanhas informativas para a população que abordem temas de guarda responsável e educação em saúde são de igual importância para se reduzir crimes ambientais, reprodução indesejada, riscos de mordeduras, acidentes de trânsito, contaminação ambiental pela eliminação de fezes e animais mortos, bem como a orientação para o correto acondicionamento do lixo orgânico a fim de evitar fonte de alimentos dispersos nas ruas, evitando descontrole populacional de cães e outros animais como ratos e pombos.

Somente com todas estas atividades ocorrendo de maneira articulada e simultânea pode-se alcançar sucesso no controle populacional de cães, assegurando assim uma melhor qualidade de vida tanto para o ser humano quanto para os animais.

Bibliografia

BIONDO, A. W.; KOBLITZ, E.; UTIME, R. ; BONACIM, J.E.; FEITOSA, C.; VALEIXO, M.; MOLENTO, C. F. M. Owned and Semi-owned Dogs Census in Curitiba and Surroundings, Brazil. In: ISAE North American Regional Meeting, 2006, Vancouver-Canada. ISAE North American Regional Meeting Program and Abstracts, 2006.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Expert consultation on Rabies. WHO Technical Report Series, 931, 2005.

Por Alexander W. Biondo, médico veterinário docente da UFPR

Graziela R. da Cunha, Mariana A. G. da Silva e Keila Y. Fuji, graduandas em Medicina Veterinária pela UFPR

Regina A. Utime, coordenadora do Centro de Controle de Zoonoses de Curitiba.

Carla F. M. Molento, médica veterinária docente da UFPR

Contato: zoonoses@ufpr.br


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