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A demografia médico veterinária necessita ser controlada


Publicado em: 31/08/2021 11:37 | Categoria: Geral | Autor: Antônio Felipe Paulino de Figueiredo Wouk

 

Resumo
Felipe Wouk, membro ‘ad hoc’ da Comissão Estadual de Educação da Medicina Veterinária (CEEMV) do CRMV-PR, analisa a necessidade de realização de um censo sobre a medicina veterinária no Brasil. Wouk acredita que um estudo demográfico irá embasar mudanças necessárias para uma formação médico-veterinária de qualidade
Artigo
A demografia médico veterinária necessita ser controlada

A demografia médico veterinária necessita ser controlada
Por Antônio Felipe Paulino de Figueiredo Wouk
Médico-veterinário (CRMV-PR nº 850)

Pesquisas censitárias são instrumentos preciosos para se conhecer uma realidade e planejar o futuro, inclusive das profissões. Todas as áreas profissionais vivem um momento disruptivo, notadamente digital. A educação, a empregabilidade, a satisfação profissional e as expectativas do Médico Veterinário, são temas emergentes.

O estudo demográfico mais recente da Medicina Veterinária, aconteceu em 2018, na Europa, capitaneado pela Federação de Veterinários Europeus (FVE): o “Survey of the veterinary profession” (um estudo detalhado da profissão veterinária). Inaugura-se nesta publicação uma forma de análise situacional mais relevante do que simplesmente o número de estabelecimentos destinados ao ensino médico veterinário. Trata-se da relação do número de Médicos Veterinários por mil habitantes.

Nos 39 países europeus membros da FVE, para uma população de 810.103.433 cidadãos, trabalham 309.144 Médicos Veterinários, o que confere uma relação média de Médicos Veterinários/1.000 habitantes de 0,38. Mais da metade dos Médicos Veterinários europeus vivem nos seguintes países com as respectivas relações de Médicos Veterinários por 1.000 habitantes: Ucrânia (0,91), Espanha (0,58), Itália (0,50), Alemanha (0,50) e Reino Unido (0,41). Distribuídos pelos 39 países membros da FVE, existem 52 cursos de Medicina Veterinária que formam cerca de 8.000 novos profissionais a cada ano, o que é considerado pelos europeus, alarmante!

Alguns outros dados deste censo merecem destaque: 69% dos Médicos Veterinários europeus acham que os cursos não estão formando com as habilidades necessárias; 64% acham que muitos colegas exercem a profissão sem estar qualificados; 62% afirmam que estão se graduando profissionais em excesso. O estudo também sinaliza que na Europa já ocorre uma “superprodução” de Médicos Veterinários, uma vez que 23% dos profissionais estão subempregados e 11% estão há mais de 2 anos sem emprego. Para encontrar um emprego que garanta independência econômica, leva-se em média dois anos!

Alguns exemplos nos dão o panorama do continente americano. O Canadá, com 38 milhões de habitantes, conta com 13.000 Médicos Veterinários egressos de cinco cursos, com uma relação de Médicos Veterinários/1000 habitantes de 0,33. Nos Estados Unidos da América, com 328 milhões de habitantes e 119.000 Médicos Veterinários que se graduam em 33 cursos, a relação é de 0,36. No México, com 131 milhões de habitantes e 58.000 Médicos Veterinários, a relação é de 0,44.

No Brasil, o mais alarmante além da relação Médicos Veterinários/1000 habitantes, extremamente alta, é o número de Instituições de Ensino Superior com Cursos de Medicina Veterinária. Com uma de população de 215 milhões, trabalham no Brasil 154.312 Médicos Veterinários, formados em 493 cursos, dados de agosto de 2021!!! A relação média no país é de 0,7, quase o dobro da Europa, Canadá e EUA. O mais preocupante é revelado por um censo do Conselho Federal de Medicina Veterinária: em 2017 eram 117.000 Médicos Veterinários e em 2021, 154.000, um crescimento de 23% em três anos, com uma média de 12.300 novos profissionais por ano. Setenta e um por cento deste contingente, 109.422 profissionais, trabalham na região Sul (23%) e Sudeste (48%), com as seguintes relações por estado: RS (1,24), SC (1,07), PR (1,20), SP (0,93), MG (0,75), RJ (0,69) e ES (0,59). Os estados do sul do Brasil possuem uma relação de Médicos Veterinários por 1.000 habitantes que é o triplo dos índices europeu e norte-americanos!!! O pior índice europeu é o da Lituânia, 1,29, que se equipara ao índice do Rio Grande do Sul. No entanto, o estado brasileiro com a maior concentração de Médicos Veterinários, não se encontra nessas regiões. Trata-se do Mato Grosso do Sul, com uma relação de 1,83. São 5.153 Médicos Veterinários para 2.809.000 habitantes, o quíntuplo da média europeia e norte-americana!! Poder-se-ia pensar na China como pior cenário, mas as informações disponíveis, é que a de que lá atuam 130.000 veterinários, sendo 13.000 na área de pequenos animais. Na China estão se formando por ano, 1.600 Médicos Veterinários, e os que decidem trabalhar em clínicas saltaram de 10% para 40%. Para uma população de 1,4 bilhão, tem-se uma relação de 0,092. Portugal, Espanha, Itália e Alemanha, com índices próximos de 0,5, considerados muito problemáticos pelos europeus, se equiparam ao nosso Espírito Santo, por exemplo. O Reino Unido, com 0,41, corresponde ao Sergipe e a França, com 0,29 ao Amazonas. Esta relação é constante na França há 40 anos, desde quando a Ordem dos Médicos Veterinários (organismo equivalente ao nosso CFMV) passou a regular o número de novas vagas para o concurso de acesso às 4 Escolas de Medicina Veterinária públicas, não existindo cursos privados no país. A demografia veterinária é avaliada anualmente, verificando aposentadorias, óbitos, estudos de demanda junto aos empregadores possíveis, determinado o número de novos profissionais a serem formados.

O estudo censitário mais recente sobre a demografia médico veterinária em nosso país aconteceu em 2016, no estado do Paraná, produzido por um consórcio de entidades de classe: Sindicato dos Médicos Veterinários do Paraná (SINDIVET-PR), Conselho Regional de Medicina Veterinária do Paraná (CRMV-PR) e Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais (ANCLIVEPA-PR). O estudo foi intitulado “Perfil, opinião, satisfação e expectativas dos Médicos Veterinários com a profissão”. Para valorar um dado importante para o controle da demografia veterinária revelado por este estudo paranaense, é preciso rememorar a história do “Exame Nacional de Certificação Profissional” (ENCP). Esta foi uma iniciativa regulatória do CFMV, como requisito para a inscrição do Médico Veterinário no sistema CFMV/CRMVs. Este exame nacional foi aplicado aos recém graduados de 2002 a 2007 e teve 13 edições. Em um estudo feito pelo Ministério da Educação em conjunto com o CFMV, comparou-se a capacidade de avaliar a qualidade da formação profissional do ENCP em relação ao sistema oficial de avaliação. O ENCP evidenciou maior eficiência para discriminar qualidade. No censo SINDIVET/CRMV-PR/ANCLIVEPA, 53% dos Médicos Veterinários advogam o retorno do ENCP como uma forma de melhor qualificar a nossa profissão! Alguns outros destaques deste censo: 43% desejam o aperfeiçoamento do ensino onde julgam faltar o aprendizado prático e capacitação para o mercado de trabalho, onde chegam sem noções de empreendedorismo e gestão pessoal e de negócio; boa parte está progressivamente insatisfeita com a profissão e queixam-se da falta de ética nas relações entre profissionais e da união da classe médico veterinária.

O fato da educação privada médico veterinária ter se tornado um grande negócio, especialmente no Brasil, fez com que dos 32 cursos existentes em 1980, tenhamos chegado aos 493 em agosto de 2021, e este número não para de aumentar, o que corresponde já hoje a mais da metade de todos os cursos existentes no mundo! Uma análise ética e moral pela qualidade do ensino impõe uma pergunta: onde encontrar tantos docentes bem formados, com experiência profissional prévia, com maturidade intelectual, para lecionar em 493 cursos? Boa parte de quem está ensinando deveria ainda estar aprendendo. Profissionais são contratados como sumidades multidisciplinares, porque vão “ensinar” três, quatro, até cinco disciplinas ou mais, com baixos salários, tudo para diminuir os custos. Neste sentido também, Doutores custam mais caro e permanecem, muitas das vezes, empregados só até o momento da avaliação pelo MEC. O mérito e a qualidade não são valorizados por muitos mantenedores que por sua vez cobram gordas mensalidades - um verdadeiro estelionato intelectual. O egresso muitas vezes só vai se dar conta do seu despreparo para o mercado de trabalho quando sofre, no Sistema CFMV/CRMVs, um processo ético-disciplinar por imperícia. Médicos Veterinários contratados como docentes, um emprego como qualquer outro, não mais uma vocação, se rendem às condições dos mantenedores por razões de subsistência econômica e, alguns, sofrem por traírem seus valores e crenças mais valiosos, o que leva a um esboroamento moral das instituições de ensino e de boa parte dos Médicos Veterinários. Outra consequência é um processo de autoengano coletivo como mecanismo de defesa: “o professor finge que ensina e o estudante finge que aprende.” Como resultado, entrega-se à sociedade em muitos casos um profissional que não atende ao perfil profissional do egresso, estabelecido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Para agravar, este profissional terá uma baixa remuneração e será pouco reconhecido socialmente. Felizmente, em outras situações, nos deparamos com um profissional que já durante a sua graduação se conscientiza das deficiências em sua formação e passa a buscar alternativas para uma educação continuada; isso, no entanto, pode vir a demandar recursos financeiros, que não estão disponíveis para todos, ocasionando mais desigualdades.

Possuímos cursos de Medicina Veterinária no Brasil, públicos e privados, que se equiparam aos melhores cursos existentes na Europa, nos EUA e em outros países, mas infelizmente neste universo de 493 cursos eles são a minoria. No Sistema latino-americano de Acreditação de Cursos ARCU-SUL, iniciativa do MERCOSUL educativo, 14 cursos brasileiros foram acreditados. O Sistema CFMV/CRMVs instituiu um Sistema de Acreditação que distinguiu até agora poucos cursos. Está evidente neste cenário, que o sistema oficial de avaliação pelo MEC há muito tempo não discrimina qualidade, como demonstram relatórios elaborados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), disponíveis publicamente.

Nos encontramos em uma rota de perda dos valores da nossa cultura profissional, da autoestima e do reconhecimento social, formando mal a maioria dos Médicos Veterinários brasileiros, para o subemprego ou desemprego. É preciso mudar!

Para produzir as mudanças necessárias, alguns indivíduos e instituições, são os primeiros a dar os primeiros passos e assim “contaminam”, pelo exemplo, os demais dando início a um ambiente virtuoso de mudança. Isto já vem acontecendo, embora timidamente. Para salvaguardar nossos valores como classe profissional, precisamos estabelecer posturas coletivas baseadas na confiança mútua e definir objetivos e estratégias para a execução imediata da correção de nossos caminhos profissionais e para preparar-nos para as mudanças exigidas no futuro. Para organizar os esforços, necessitamos de uma instância superior ou melhor ainda, da sinergia de um consórcio de instâncias superiores: Sistema CFMV/CRMVs, Sociedades de Medicina Veterinária, Sindicatos, Academias de Medicina Veterinária, Associações e Colégios de especialistas, Instituições de Ensino da Medicina Veterinária, e outros. É inútil esperar o surgimento de projetos coletivos por geração espontânea ou uma estratégia comum a partir de projetos individuais. Isto por outro lado não pode se tornar pretexto para pessoalmente não agir.

racionalmente produzirmos as mudanças necessárias para uma formação médico veterinária de qualidade, é necessário iniciar pelo controle da demografia veterinária. O primeiro passo é realizar no Brasil, a exemplo do que fez a Federação Europeia de Veterinários, com o patrocínio (é uma ação dispendiosa) de atores privados como grandes laboratórios farmacêuticos veterinários, indústrias de ração animal, por exemplo, um censo demográfico nacional da profissão. Apenas por este mecanismo conheceremos a realidade do exercício da Medicina Veterinária no Brasil em detalhes e, assim, planejarmos as ações necessárias às correções de percurso profissional.

A Medicina, nos mostra como dar o segundo passo: com a sua força política, que vem dos tempos imperiais no Brasil, associações médicas, há alguns anos, obtiveram junto ao Ministério da Educação, uma moratória de cinco anos que proíbe a abertura de novos cursos e ampliação de vagas existentes. Devemos buscar o mesmo para nós.

Uma terceira ação, que conta com franco apoio da nossa classe, é buscar reeditar o Exame Nacional de Certificação Profissional, por mecanismos legais que o suportem.

Para além do controle da demografia profissional, precisamos conscientizar, mantenedores, gestores, instituições, docentes e estudantes da necessidade de cumprir as Diretrizes Curriculares Nacionais, recentemente atualizadas e que são exemplares. Neste contexto, cursos noturnos e de educação à distância, que infelizmente prosperam, não são aceitáveis. Por esta razão, é também muito importante aplicar mecanismos eficientes de acreditação de cursos, de instituições, e até de acreditação dos acreditadores.

A Medicina Veterinária é uma profissão tentacular, importante para a sociedade. Aos 250 anos da Medicina Veterinária, festejados em 2011, foi cunhado um slogan que traduz essa diversidade de atuação e relevância para a sociedade: “Medicina Veterinária para a saúde, Medicina Veterinária para o alimento, Medicina Veterinária para o planeta”. Há um futuro promissor para a profissão se forem respeitadas e valorizadas a cultura profissional. O interesse em mudanças importantes se faz e se farão necessárias em um mundo cada vez mais dinâmico onde tecnologia e humanidade são fundamentais para as transformações com vistas ao bem-estar único.

Viva a Medicina Veterinária!


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